E.T., Senhor dos Anéis, Fleabag e outros: Como a Música Erudita Brasileira Faz Parte do Seu Dia a Dia e Você Nem Percebe
- Concreto Neves
- 30 de jun.
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de jul.
Naqueles momentos do dia a dia, quando tô lavando louça, andando na rua ou só procrastinando no sofá eu ouço de tudo. Techno, pagode, MPB, forró, sertanejo… Mas, ultimamente, venho tentando resgatar também a música erudita brasileira pra me acompanhar.

Eu sei. Música erudita pode parecer aquele negócio meio blasé, meio distante, que a gente imagina em salas enormes cheias de gente muito séria. Mas vem comigo acompanhando o raciocínio e você vai ver que já ouve, já entende e já sente a linguagem da música erudita no seu dia a dia, talvez sem perceber.
Eu vivi esse universo: estudei fagote com o mestre Noel Devos, autoridade absoluta do instrumento no Brasil. Me afundei em partituras, toquei na orquestra e no grupo de música antiga (música de um período anterior ao que a gente entende como "música clássica") da Escola de Música Villa-Lobos. Mas acabei caminhando por outras veredas do audiovisual e a música erudita foi ficando de lado. Voltando a ouvir, inevitavelmente comecei a relacionar algumas peças brasileiras a grandes filmes e séries.
Por isso, deixo essa lista com 7 peças brasileiras que podem ser sua porta de entrada para ouvir música erudita de um jeito mais leve. Relaxa, bicho! Dá o play, vai responder email e faz de conta que é uma trilha de uma série que você tá acompanhando. Tenha medo não. Vai dar certo. Vem comigo:
1. Heitor Villa-Lobos — Choros nº 10 (1926)
Essa obra veio muito antes de John Williams. A estrutura épica, os contrastes, os momentos de tensão e explosão… tudo ali já aponta caminhos que compositores de Hollywood percorreriam anos depois. Choros nº 10 junta orquestra, coro, ritmos populares brasileiros, e um clímax tão impactante que parece cena de filme.
Ouve aí de novo a trilha de Senhor dos Anéis, principalmente aquele coralzão que se chama A Knife In the Dark, depois de ouvir o movimento Rasga Coração em Choros nº 10. Villa-Lobos, lá atrás, já estava décadas à frente, misturando o erudito com o popular, explorando uma sonoridade de concerto que já faz parte da sua vida pelas mãos dos Howard Shore da vida.
2. César Guerra-Peixe & Clóvis Pereira — Mourão (1974)
Escrita originalmente para dois violinos (que poderiam ser rabecas) e orquestra, Mourão é inspirada em ritmos nordestinos, especialmente o baião. Em 1974 Mourão foi gravada pelo Quinteto Armorial, sendo considerada o hino do movimento. Perceba como a percussão popular é inserida no contexto da linguagem orquestral, fazendo a tradição erudita dialogar com a cultura popular.
Agora, depois de ouvir essa delícia, vai ouvir Cavaleiro do Sol, de Antúlio Madureira, um dos temas da trilha de O Auto da Compadecida, e me diz se essa sonoridade já não faz parte do seu leque de referências.
3. Francisco Mignone – Maracatu do Chico Rei (1933)
Mignone é um compositor que entende a música como paisagem e rito. Em Maracatu do Chico Rei, ele puxa o som lá do chão batido do maracatu pernambucano e leva para o palco da música de concerto. É percussão, dança e narrativa: a história de Chico Rei, um rei africano escravizado no Brasil que compra a liberdade de seu povo.
Essa música me soa como a trilha de uma narrativa cheia de aventura, como se E.T. se passasse no Brasil (e temos os nossos ETs). É aquele tipo de som que eu ouço e imagino o ET de Varginha na cestinha de uma bike do Itaú cortando o céu noturno de Minas. Forcei a barra? Acho que não muito.
4. Marisa Rezende – Fragmentos (2015)
Uma obra que soa como quem recolhe os cacos de uma história e tenta fazer um mosaico sonoro. Sem melodia fácil, sem refrão pra TikTok, mas cheio textura e espaço.
Duvido você não associar também ao que Hildur Guðnadóttir fez na trilha de Coringa. Marisa fazia isso muito antes: criava paisagens sonoras que fazem a gente escutar o próprio tempo que passa. Pra quem gosta de sons estranhos, atmosferas densas, músicas que expandem espaço e tempo. Ideal pra ouvir de fone, de olhos fechados, ou enquanto encara a tela do computador, meio sem saber o que fazer, naquele block criativo.
5. Jocy de Oliveira – Interlúnio II (2010)
Música erudita brasileira não é só orquestra. Jocy de Oliveira é uma personagem da nossa música que sempre esteve à frente do seu tempo, experimentando com música eletrônica, voz e performance quando quase ninguém fazia isso por aqui.
Interlúnio II me leva pra uma onda Robert Aiki Aubrey Lowe em Candyman. Texturas estranhas, uma sensação de que algo de errado não está muito certo. Jocy, pioneira na música experimental, faz esse tipo de maluquice desde a década de 60, criando ambiências que até hoje dialogam com o cinema. Se você curte coisas fora da caixinha, tipo Laurie Anderson, vem comigo aqui que é sucesso.
6. Carlos Alberto Pinto Fonseca – Missa Afro-Brasileira (1970)
Essa não é uma missa tradicional. A referência à herança africana está impressa não só na construção rítmica do canto coral, mas também na própria letra, com expressões típicas da oralidade afro-brasileira, como onomatopeias e cantos de embalo. Essa missa desloca o eixo da missa católica europeia, bem do jeitinho que Isobel Waller-Bridge usa o Kyrie Eleison ("Senhor, tende piedade" em grego - um dos movimentos de uma missa de coral católica) na segunda temporada de Fleabag. A Missa Afro-Brasileira faz algo parecido. Usa uma estrutura tradicional pra revelar outras camadas culturais.
7. Felipe Lara – Archi Elastici (2014)
Pra mostrar que a música erudita brasileira pode ser bem coisa de doidão, trago Felipe Lara, um compositor contemporâneo que faz um trabalho fácil de dar um ctrl c ctrl v em qualquer terror maluco da A24.
Pra Finalizar
Essa música erudita, que às vezes parece tão “de outro mundo”, na real tá bem mais perto da gente do que parece. Ela segue viva, influenciando trilhas de cinema, séries e arranjos de música pop.
Então, quando você ouve um violoncelo apelativo e dramático num filme ou um coral grandioso numa série, tem um pouco desse mundo aqui também. A música erudita não ficou no passado, ela só trocou de roupa, pegou outros caminhos e, de um jeito ou de outro, continua tocando a gente.
Bora ouvir? Se chegou até aqui e aceitou a sugestão de ouvir lavando aquela louça acumulada que eu sei que você tem, me conta aqui embaixo o que achou e compartilha com alguém. Essa música é presente, é futuro, vai estar nos nossos próximos prêmios de cinema, nossas próximas séries... É nossa trilha sonora.