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Silêncios Ensurdecedores: Como o Design de Som de "Severance" Te Deixa Tenso

  • Foto do escritor: Concreto Neves
    Concreto Neves
  • 30 de jun.
  • 4 min de leitura
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Se você nunca assistiu a Severance, não sabe o que está perdendo. E se é fã da série, provavelmente já sentiu alguns desconfortos e, talvez, não saiba exatamente o porquê. Seja um clique de teclado ou um passo mais abafado e esquisito do que deveria, não foi coincidência. A série, que já viralizou por seu roteiro e estética minimalista, esconde um trunfo menos óbvio: seu design de som é uma aula de como transformar técnica em narrativa. E, sendo eu um apaixonado pelo tema, não pude deixar de prestar atenção em certos detalhes com um misto de admiração e vontade de abrir minha DAW e tirar meus microfones da gaveta para experimentar.


Fui atrás de matérias e entrevistas com Christopher Lane, responsável pelo som da série, e entendi minha admiração. Lane criou ambientes e compôs o áudio das cenas como em qualquer outro produto audiovisual, sim, mas deu alguns passos além. Ele enfiou um bisturi na nossa percepção de espectador. Como? Usando estratégias que todo criativo de áudio deveria ter no radar.

Alguns recortes que fiz da segunda temporada para destacar o desenho de som. Aqui tem um pouco de tudo o que é comentado no texto, sobretudo silêncios ensurdecedores.

1. Microfones que escutam o que nós não vemos


Lane escolheu captar vibrações íntimas com microfones de contato, adicionando camadas sutis de sons secos, quase claustrofóbicos, como os passos nos corredores da Lumon.

Para quem não conhece, microfones de contato são microfones que tem um material especial chamado cristal piezoelétrico. Por isso, também são chamados de microfones de piezo. Quando esse cristal vibra, produz uma corrente elétrica que é transformada em som audível para nós. Então, o piezo não capta o som que se propaga no ar, como microfones condensadores ou de fita, mas apenas a vibração de superfícies em que ele está em contato.


Parece um detalhe técnico, mas é puro cálculo psicológico: ao isolar o som do ambiente e captar a vibração que os pés produzem ao tocar o chão, ele nos faz sentir o mesmo desconforto que os personagens. Não são passos normais. São estranhos aos nossos ouvidos.


(Fica a dica: já experimentou usar um mic de contato naquele projeto "sem alma"? Às vezes, a textura que falta está nas vibrações que ignoramos.)


2. Reverb que não ecoa, mas oprime


Um sábio fotógrafo uma vez me disse (se referindo a imagens, mas tomo a liberdade de trazer para o áudio): "O óbvio é para os tolos". Os escritórios da Lumon têm um reverb artificial calculado ao milissegundo: espaços amplos, mas com decay (decaimento) curto, como se as paredes engolissem o som. Usando plugins de convolution reverb, como Altiverb, que usa gravações em espaços reais para simular como o seu som responderia àquele espaço, a equipe criou a sensação de que o ambiente está vivo e em estado de vigilância permanente. Curioso, porque a narrativa coloca o prédio como um ser vivo mesmo.


Isso me lembra que reverb não é só sobre espaço, é sobre pressão. Algo a ponderar na minha próxima mixagem.


3. Silêncio não é uma ausência, mas um personagem


Em Severance, o silêncio tem camadas. Zumbidos de fiação, ruídos de ar-condicionado processados para ficarem quase subliminares... Lane usou até microfones de fita para capturar graves que você sente, não ouve. Infelizmente, para esses graves você vai precisar de um bom subwoofer para sentir.


Nossos ouvidos, em geral, captam um intervalo em torno de 20hz a 20.000hz. Grosso modo e, definitivamente, longe de ser um valor absoluto, abaixo de 20hz não ouvimos, mas sentimos as vibrações. São os chamados infrassons. Às vezes, sentimos essas frequências em boas salas de cinema, ou quando aquele DJ de drum and bass solta a braba num bom sistema de som. No contexto da série, é o paradoxal desafio de criar um "vazio" denso.


4. Quando o foley vai além


A equipe de Lane poderia ter recorrido às bibliotecas de sons para os sons do teclado, por exemplo. Existem infinitas bibliotecas e muitas são usadas em grandes produções. Mas olha só o que a galera fez: os sons dos teclados foram captados com um microfone de lapela próximo das mãos, e essa captação foi combinada a sons internos dos componentes do teclado captados pelos microfones de contato, que citei acima. Essa técnica permitiu gerar sons hiper-realistas, porém estranhamente frios.


No episódio 2 da segunda temporada rola um encontro em uma lanchonete. Eu tinha certeza que tinha alguém na cozinha de casa pela ambiência criada. Em outras cenas, até as roupas soam desconfortáveis.


5. Trilha sonora ou extensão do ambiente?


A colaboração entre Lane e o compositor Theodore Shapiro é uma aula de integração. Shapiro usou sintetizadores modulares para criar paisagens sonoras que se entrelaçam perfeitamente com o foley e os ruídos ambientes construídos por Lane. Em algumas cenas, drones contínuos criados a partir do processamento de sons de ventiladores industriais se misturam a texturas musicais, borrando completamente as linhas entre sons diegéticos (sons que existem dentro do mundo da narrativa) e não diegéticos (nesse caso, a trilha sonora).


Enquanto os drones sugerem a opressão do espaço corporativo, texturas de sintetizadores adicionam a camada emocional, conectando o estado psicológico dos personagens ao ambiente. O som de ambientes como escritórios e corredores por vezes funcionam quase como se fossem parte da composição musical. Essa fronteira difusa entre som diegético e música é o futuro.


Por que isso tudo importa para você? 


Severance é um excelente entretenimento, mas também é um manifesto técnico-criativo. Mostra que áudio não é só "apoiar" a imagem, mas sim construir junto a realidade da narrativa. Precisamos pensar: como nossas escolhas técnicas (um reverb, um mic, um silêncio que grita...) estão servindo à narrativa?


Se aprendi alguma coisa com essa pesquisa, é: som bom não é o que chama atenção. É o que mexe com o inconsciente, mesmo que o espectador não saiba explicar por que aquele corredor parece tão... assustadoramente real.


E você? Já usou técnicas inusitadas para criar atmosferas que grudam no público? Vamos trocar ideias nos comentários! Afinal, assim como no time de refinamento de macrodados da Lumon, o som é um trabalho coletivo.

 
 
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