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Narrativas Sonoras e Identidade Cultural: O Som como Elemento de Pertencimento

  • Foto do escritor: Concreto Neves
    Concreto Neves
  • 2 de jul.
  • 4 min de leitura

Depois de ler A Afinação do Mundo, do canadense R. Murray Schafer, fiquei doido pela ideia de que o som que cerca a gente, a chamada paisagem sonora, é um universo vivo, cheio de significados, memórias e histórias que ajudam a moldar quem a gente é e como a gente se conecta com os lugares onde vive, e não só um pano de fundo. A partir daí, eu que sempre torci o nariz a textos muito acadêmicos, caí em na toca do coelho de pesquisas que dialogam com essa visão e que aprofundam a relação entre som e identidade cultural, só pelo esporte.


Paisagem Sonora: Muito Além do Ruído


Schafer define paisagem sonora como o conjunto de sons que compõem nosso ambiente. Dos cantos de pássaros aos ruídos urbanos, dos sons agradáveis aos irritantes. Pra ele, essa paisagem não é um organismo em constante mutação que reflete nossa relação com o ambiente e com a cultura. Ele convida a gente a pensar como a nossa relação com esses sons está "afinada". Estamos atentos ao que ouvimos? Estamos cuidando do nosso ambiente sonoro?


Seguindo essa linha, Renata Silvestre de Santana, da Universidade Federal de Pernambuco, acrescenta que a paisagem sonora é um elemento fundamental da construção cultural. Ela explica que os sons que nos cercam são códigos que comunicam pertencimento, história e valores compartilhados.


Marcos Torres e Maria Kozel, em um estudo sobre paisagens sonoras, reforçam a ideia: “Cada cidade, cada lugar tem sua identidade sonora, numa variação de sons entre um lugar e outro, e também entre os tempos e as culturas”. Eles mostram que sons cotidianos (buzinas, vozes, diálogos) funcionam como elementos que constroem a comunicação e a expressão da identidade cultural local.


Memória Sonora e Patrimônio Imaterial


A conexão entre som e memória é outro lado desse cubo mágico que me intriga. Maurice Halbwachs, sociólogo francês, diz que a memória é um fenômeno social, construído em grupo e sempre ligado a contextos culturais. Pra ele, “a memória é sempre um trabalho do sujeito, mas também é habitada por grupos de referência”. Isso significa que os sons que lembramos e valorizamos são aqueles que nos conectam a comunidades e histórias compartilhadas.


No Brasil, essa ideia é elevada a outro nível quando pensamos nos sons das cidades e das comunidades. Por exemplo, o famigerado barulho de makita, o louvor da igreja vizinha, o carro do ovo e o corte de giro dos rolezinhos de moto são elementos sonoros que carregam histórias e ajudam a formar uma memória coletiva. Na Suécia, Suriname, ou Coréia, até onde me consta, não tem isso. O projeto “Paisagem Sonora, Memória e Cultura”, da FAU-UFRJ, tem se registrado essas sonoridades urbanas para fortalecer a identidade e a memória do Rio de Janeiro (Projeto Paisagem Sonora, Memória e Cultura, 2009).


Música, Expressão e Identidade Cultural


A música provavelmente é o canal mais direto e poderoso pra expressar identidade cultural. Ela funciona como um elo entre passado e presente, entre indivíduo e grupo, e pode ser um espaço de resistência e afirmação, especialmente para grupos marginalizados. Por aqui, gêneros como o samba, o forró e o hip-hop não são só estilos musicais, mas símbolos culturais que carregam narrativas de pertencimento.


Um exemplo pessoal: eu gosto de rap e conheço alguns rappers, mas nunca fui do rap. Tendo proximidade com algumas pessoas da comunidade entendi que "entrar para o rap" significa muito mais que gostar, e até conhecer muito a respeito. Vai além. É pertencer. "O rap é compromisso", e quem está dentro vive o rap de formas que só ouve nunca viveria.


O Design Sonoro e a Educação Musical como Ferramentas de Valorização


Compreender a relação entre som e identidade abre portas a práticas artísticas e educativas que valorizam a diversidade sonora. O design sonoro pode ajudar a construir narrativas que respeitem e amplifiquem as vozes locais, enquanto a educação musical pode ser um espaço para explorar essas identidades.


Ferramentas como gravação e mapeamento sonoro são usadas para que comunidades documentem e reflitam sobre suas paisagens sonoras. Isso transforma o som em um recurso ativo de afirmação cultural e educação da escuta.


Conclusão: Escutar para Poder Estar, Estar para poder Pertencer


O som é um elo invisível que conecta pessoas, lugares e tempos. Reconhecer a paisagem sonora como parte da identidade cultural é um convite a uma escuta mais atenta e respeitosa das várias vozes que compõem nosso tecido social.


Investir em narrativas sonoras conscientes é investir em pertencimento, diversidade e memória. É transformar o ato de escutar em um gesto político e cultural que valoriza quem somos e de onde viemos, e que nos ajuda a imaginar juntos os sons do futuro.


Referências


 
 
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