O Retorno de Ouro do Charme: Como o Baile de Madureira Virou Fenômeno Global nos Anos 2020
- Concreto Neves
- 8 de jul.
- 5 min de leitura
Se tu acha que os anos 2020 foram só sobre TikTok e pandemia, tem que conhecer a história que explodiu no The New York Times em janeiro de 2025: o Baile Charme do Viaduto de Madureira se tornou a grande embaixada da cultura negra brasileira pro mundo. Enquanto a gente debatia algoritmos e home office, uma revolução silenciosa acontecia debaixo do viaduto Negrão de Lima, todos os sábados, desde 1990.
O charme nunca saiu de cena completamente. Mas na última década rolou um renascimento que misturou nostalgia, resistência e uma nova geração que descobriu nos passinhos uma forma de se conectar musicalmente com seus pais e avós.
O Acidente Perfeito que Criou um Gênero
A história começa em 8 de março de 1980, quando DJ Corello (Marco Aurélio Ferreira) tava tocando no clube Mackenzie, no Méier (e quem é do Méier não bobéier há muito tempo). Era fim de noite, a disco music tava cansando o público, e Corello decidiu experimentar. Colocou um R&B mais lento, mais melódico, que os gringos chamavam de "urban contemporary". E soltou a frase que mudaria tudo: "Chegou a hora do charminho, transe seu corpo bem devagarinho".
O termo grudou na hora. A galera começou a falar "vou pro charminho", "vai ter charme hoje". Corello havia batizado não apenas um estilo musical, mas um movimento cultural que combinava o soul da Filadélfia e o R&B com a malemolência carioca.
Era época de ditadura, e a música negra estadunidense funcionava como uma resistência cultural disfarçada. Os bailes de charme se tornaram territórios onde a juventude negra e periférica podia construir identidade própria longe dos olhares dos milicos.
O DNA Sonoro de uma Resistência
O charme nasceu de uma triangulação sonora quase perfeita: pegou o soul da Filadélfia (com aqueles arranjos irados), misturou com o R&B contemporâneo que aparecia nos EUA nos anos 80, e temperou tudo com new jack swing, o estilo que produtor Teddy Riley criou ao fundir hip hop com R&B.
"O movimento charme foi uma invenção carioca genuína", como diz o decreto que transformou o charme em patrimônio imaterial da cidade em 2013. Era música gringa filtrada pelo ouvido carioca, que criou uma dança que permitia tanto a sensualidade quanto a elegância, tanto individual quanto coletiva.
Os "charmeiros" desenvolveram toda uma linguagem corporal: os passinhos sociais que todos dançavam juntos, criando coreografias coletivas e espontâneas. Passo do Desfile, Passo da Mão no Cabelo, Passo do Sambinha, cada movimento tinha nome e história.
A Migração para o Viaduto
O charme circulou por vários pontos da Zona Norte durante os anos 80 e início dos 90: Vera Cruz (Abolição), Mackenzie (Méier), Disco Voador (Marechal Hermes). Mas foi em 1990 que encontrou seu lar definitivo.
Celso e César Athayde, produtores culturais que frequentavam os bailes do DJ Corello, tiveram uma ideia prática: fazer um baile charme em Madureira, mais perto de casa. Junto com os amigos Leno, Pedro, Edinho e Xandoca, que já organizavam o Pagodão de Madureira, eles criaram o "Charm na Rua" em março de 1993.
A escolha do lugar foi estratégica: embaixo do Viaduto Negrão de Lima, conhecido como Viaduto de Madureira, o maior viaduto do país na época que foi inaugurado, em 1958. Ali ninguém reclamaria do barulho, não precisava pagar aluguel, e tinha espaço pra geral.
O Renascimento nos Anos 2020
Se os anos 90 e 2000 foram a época de ouro dos bailes charme (com público de até 5 mil pessoas e artistas internacionais como Sybil, Curtis Hairston e Glen Jones se apresentando), nos anos 2010 deu desacelerada. Parecia que o movimento poderia virar nostalgia
Mas alguma coisa mudou radicalmente nos anos 2020. E não foi só a pandemia que forçou todo mundo a repensar as formas de socialização. Foi uma convergência de fatores que criaram o momento charme atual:
A Geração TikTok Descobriu os Passinhos
Geovana Cruz, de 20 anos, viralizou vídeos de charme no TikTok com milhares de visualizações. "É viciante. Quanto mais você dança, mais quer continuar", ela conta ao The New York Times, na matéria com link lá no começo do artigo.
A nova geração não vê o charme como música "antiga", mas como cultura viva. Larissa Rodrigues Martins, professora de 25 anos, resume: "É um lugar onde compartilhamos e aprendemos não apenas sobre passos, mas sobre a vida".
A Profissionalização do Movimento
Marcus Azevedo, que começou a frequentar os bailes aos 12 anos, acabou virando um grande articulador dessa nova fase. Aos 46, ele é coreógrafo, produtor cultural e diretor da Dança Charme & Cia.
Em 2020, o Sindicato dos Profissionais da Dança do Rio de Janeiro reconheceu oficialmente a dança charme como categoria profissional, permitindo que dançarinos se formalizassem, criando até uma apostilha de conteúdos e referência. Marcus criou os Originais do Charme, primeira companhia profissional de dança charme, formada por bailarinos entre 40 e 60 anos (os "cascudos") que viveram a época de ouro.
O Reconhecimento Como Patrimônio
Em 2013, o Baile Charme foi declarado patrimônio cultural imaterial da cidade do Rio. Em 2019, virou patrimônio cultural imaterial do estado. Em 2024, o viaduto foi transformado em "museu vivo" através do Projeto Zona de Arte Urbana (ZAU), com grafites contando a história da música negra brasileira.
O charme arregaçou as fronteiras do Rio. São Paulo tem aulas regulares no Vale do Anhangabaú. Sorocaba realizou em 2025 o "Baile Charm – Cultura Preta em Movimento". Até Pelotas, no Rio Grande do Sul, desenvolveu sua própria cena charme.
A Trilha Sonora da Resistência
O charme dos anos 2020 mantém suas raízes musicais, mas incorporou novidades. DJ Michell, residente do Viaduto desde 1994, explica: "Hoje, o charme é mais brasileiro. Isso faz parte da nossa evolução". Ele continua tocando clássicos como "Hotel" de Cassidy e "He Wasn't Man Enough" de Toni Braxton, mas mistura com Os Garotin, trio de R&B moderno que virou sensação.
A classificação musical que os charmeiros usam é chave: "flashbacks" são as músicas até meados dos anos 80, "midbacks" são o estilo dos anos 90, e "new jack swing" engloba a fusão hip hop/R&B que dominou o fim dos anos 80 e início dos 90.
Artistas como Luther Vandross, Whitney Houston, Bobby Brown, Babyface, SOS Band, Maze, Alexander O'Neal formam o cânone do charme. Mas a nova geração trouxe tambémm neo soul, R&B contemporâneo e até artistas brasileiros que dialogam com essas referências.
O movimento se desdobrou em vertentes como o funk melody, uma fusão do funk carioca com o romantismo do charme. Artistas como Márcio e Goró, ícones dos anos 90 e crias de Madureira, foram fundamentais pra dar voz a essa estética, com hits como “A Distância” (que embalou meu coração nas primeiras decepções amorosas da pré adolescência), reforçando que a única diferença entre esses universos musicais, como bem disseram Marquinhos e Dolores, lá em 1994, é que "um anda bonito e o outro elegante".
O Fenômeno Global
Quando o The New York Times dedicou uma matéria inteira ao Baile Charme de Madureira, foi o coroamento internacional de um processo que transformou uma festa de periferia em fenômeno de cultura global. Marcelo Freixo, atual presidente da Embratur, destacou na matéria a importância dessa divulgação lá na gringa: "Nós estamos mostrando ao mundo a beleza e a diversidade das nossas expressões culturais".
O viaduto recebe hoje visitantes do mundo inteiro. As aulas de charme de sábado de manhã reúnem crianças, adolescentes e homens e mulheres na faixa dos 50 e 60 anos. À noite, o baile movimenta até 5 mil pessoas por edição.
O Som que Não Para
Mesmo quando tudo acelera, mesmo quando as tecnologias mudam, mesmo quando a sociedade tenta invisibilizar, a música sempre encontra um jeito de fazer a gente dançar. O Baile Charme do Viaduto de Madureira é a prova de que quando você cria um espaço onde 5 mil pessoas se encontram todo sábado há 35 anos pra dançar, você não tá só fazendo festa. Você tá fazendo revolução.
E acho que depois dessa vou me sentir obrigado a esmiuçar a história do Movimento Black Rio, porque, sem ele, talvez o Charme não existisse...