Ouvir: Inteligência Artificial, Cultura e Crise da Escuta
- Concreto Neves
- há 4 dias
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A instalação sonora interativa Ouvir, de Craca Beat, foi criada para simular o processo de aprendizado coletivo de uma comunidade e a formação de um léxico próprio a partir das trocas meméticas entre indivíduos ou com o público visitante. O projeto, comissionado pela mostra “Transe”, que reuniu outros 19 artistas-pesquisadores explorando conexões entre arte e ciência em plena distopia, coloca duas redes autônomas de inteligências artificiais em salas separadas. Cada uma apreende e reproduz léxicos melódicos por meio de padrões sonoros, com um sistema de aprendizado de máquina desenvolvido especialmente para a obra em colaboração com o artista e programador Matheus Leston.

O público é convidado a intervir nesse processo continuado, cantando e assoviando junto às cócleas virtuais que respondem em tempo real, assimilando essas novas melodias em seu vocabulário. Depois de meses de conversas e experimentos, o destino cultural dessas comunidades sonoras, tão próximas geograficamente, mas afetivamente desconectadas, começa a revelar como se formam linguagens próprias.
Essa proposta dialoga diretamente com uma reflexão sobre as inteligências artificiais. Antes de poder produzir algo, toda IA precisa aprender. Esse aprendizado, na maioria dos casos, é baseado em conteúdos disponíveis na internet: milhões de imagens, rostos, hábitos de navegação, conversas privadas, curtidas e até o tempo de atenção em uma foto. É assim que modas aparentemente inocentes, como filtros que envelhecem rostos, se tornam combustível para treinar algoritmos capazes de encontrar pessoas desaparecidas ou identificar manifestantes em protestos.

O ponto central é que todo esse conhecimento vem de nós, humanos. Os algoritmos reproduzem os preconceitos que alimentamos. Por isso, não é surpresa quando exibem comportamentos racistas ou discriminatórios. Daí a urgência de inundar as redes com conteúdos diversos, visibilizando grupos historicamente marginalizados e desafiando modas massivas que uniformizam estéticas e ideias.
Na obra Ouvir, a escolha foi por criar inteligências artificiais rudimentares, isoladas da base de dados global. O único material de aprendizado são os sons que elas próprias emitem ou que o público oferece. A experiência remete ao comportamento de aves que, isoladas geograficamente, desenvolvem léxicos próprios por meio de trocas culturais. A comparação abre espaço para pensar em gírias, sotaques e idiomas como construções coletivas. Assim como animais assimilam os ruídos humanos, também somos atravessados pelos múltiplos léxicos da natureza. O canto das cigarras em conjunto, as respostas rítmicas dos anfíbios e as redes acústicas das matas formam um sistema tão complexo quanto os micélios subterrâneos que interligam as plantas. Somos, antes de tudo, seres ouvintes, já que a audição é o primeiro sentido a se desenvolver no útero.

Ao longo da exposição, amostras das melodias produzidas foram coletadas remotamente para acompanhar a evolução do comportamento sonoro. Ficou evidente que, em períodos de menor visitação, os diálogos entre as unidades se tornavam monótonos. Longos assobios de uma nota dominavam o espaço e reduziam a assimilação de melodias mais complexas. Esse fenômeno ecoa o que acontece nas redes sociais, onde mensagens simples e autoafirmativas encontram mais ressonância do que discursos divergentes ou de maior complexidade.
Nesse sentido, a obra investiga como arquiteturas digitais baseadas em bolhas de autoafirmação alimentam monotonia ideológica e intolerância. Se nas redes todos falam, também se ouve de maneira seletiva, priorizando confirmações em vez de escuta. O resultado é uma crise da escuta, tanto no espaço virtual quanto no mundo físico.
Ouvir se coloca como um experimento artístico-científico. Não no sentido de método rígido, mas como prática que usa dados sonoros, interações humanas e simulações para pensar sobre cultura e redes.