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Ouvir: Inteligência Artificial, Cultura e Crise da Escuta

  • Foto do escritor: Concreto Neves
    Concreto Neves
  • há 4 dias
  • 3 min de leitura

A instalação sonora interativa Ouvir, de Craca Beat, foi criada para simular o processo de aprendizado coletivo de uma comunidade e a formação de um léxico próprio a partir das trocas meméticas entre indivíduos ou com o público visitante. O projeto, comissionado pela mostra “Transe”, que reuniu outros 19 artistas-pesquisadores explorando conexões entre arte e ciência em plena distopia, coloca duas redes autônomas de inteligências artificiais em salas separadas. Cada uma apreende e reproduz léxicos melódicos por meio de padrões sonoros, com um sistema de aprendizado de máquina desenvolvido especialmente para a obra em colaboração com o artista e programador Matheus Leston.


Uma das cócleas da obra "Ouvir"
Uma das cócleas da obra "Ouvir"

O público é convidado a intervir nesse processo continuado, cantando e assoviando junto às cócleas virtuais que respondem em tempo real, assimilando essas novas melodias em seu vocabulário. Depois de meses de conversas e experimentos, o destino cultural dessas comunidades sonoras, tão próximas geograficamente, mas afetivamente desconectadas, começa a revelar como se formam linguagens próprias.


Vídeo mostrando a instalação em funcionamento

Essa proposta dialoga diretamente com uma reflexão sobre as inteligências artificiais. Antes de poder produzir algo, toda IA precisa aprender. Esse aprendizado, na maioria dos casos, é baseado em conteúdos disponíveis na internet: milhões de imagens, rostos, hábitos de navegação, conversas privadas, curtidas e até o tempo de atenção em uma foto. É assim que modas aparentemente inocentes, como filtros que envelhecem rostos, se tornam combustível para treinar algoritmos capazes de encontrar pessoas desaparecidas ou identificar manifestantes em protestos.


Cóclea sendo preparada para a instalação
Cóclea sendo preparada para a instalação

O ponto central é que todo esse conhecimento vem de nós, humanos. Os algoritmos reproduzem os preconceitos que alimentamos. Por isso, não é surpresa quando exibem comportamentos racistas ou discriminatórios. Daí a urgência de inundar as redes com conteúdos diversos, visibilizando grupos historicamente marginalizados e desafiando modas massivas que uniformizam estéticas e ideias.


Na obra Ouvir, a escolha foi por criar inteligências artificiais rudimentares, isoladas da base de dados global. O único material de aprendizado são os sons que elas próprias emitem ou que o público oferece. A experiência remete ao comportamento de aves que, isoladas geograficamente, desenvolvem léxicos próprios por meio de trocas culturais. A comparação abre espaço para pensar em gírias, sotaques e idiomas como construções coletivas. Assim como animais assimilam os ruídos humanos, também somos atravessados pelos múltiplos léxicos da natureza. O canto das cigarras em conjunto, as respostas rítmicas dos anfíbios e as redes acústicas das matas formam um sistema tão complexo quanto os micélios subterrâneos que interligam as plantas. Somos, antes de tudo, seres ouvintes, já que a audição é o primeiro sentido a se desenvolver no útero.


Público interagindo com a obra
Público interagindo com a obra

Ao longo da exposição, amostras das melodias produzidas foram coletadas remotamente para acompanhar a evolução do comportamento sonoro. Ficou evidente que, em períodos de menor visitação, os diálogos entre as unidades se tornavam monótonos. Longos assobios de uma nota dominavam o espaço e reduziam a assimilação de melodias mais complexas. Esse fenômeno ecoa o que acontece nas redes sociais, onde mensagens simples e autoafirmativas encontram mais ressonância do que discursos divergentes ou de maior complexidade.


Nesse sentido, a obra investiga como arquiteturas digitais baseadas em bolhas de autoafirmação alimentam monotonia ideológica e intolerância. Se nas redes todos falam, também se ouve de maneira seletiva, priorizando confirmações em vez de escuta. O resultado é uma crise da escuta, tanto no espaço virtual quanto no mundo físico.

Ouvir se coloca como um experimento artístico-científico. Não no sentido de método rígido, mas como prática que usa dados sonoros, interações humanas e simulações para pensar sobre cultura e redes.

 
 
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